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Crise do capitalismo financeiro-rentista

A crise financeira global de 2008 terminou, mas a crise mais ampla e de maior duração do capitalismo financeiro-rentista, a crise de um liberalismo econômico radical que começou naquele ano, está mais presente do que nunca. A crise financeira terminou porque primeiro os Estados Unidos e depois os países da Zona do Euro voltaram a crescer, ainda que moderadamente. Mas a crise econômica e política da estreita coalizão de classes de capitalistas rentistas e seus prepostos – os financistas e os altos executivos das grandes corporações –, que domina os países ricos, continua muito presente, e a partir de 2016 ganhou um aspecto político com o Brexit e com Donald Trump.

Durante o século XX, o capitalismo deixou de ser um capitalismo de empresários, que obtinham crédito e investiam inovando, para ser um capitalismo de rentistas que vivem de juros, dividendos e aluguéis; deixou de ser um capitalismo no qual o liberalismo econômico e a luta de classes eram relativamente compensados pelo princípio desenvolvimentista da solidariedade nacional; deixou de ser um capitalismo no qual empresários e trabalhadores tinham no mercado interno seu mais precioso ativo econômico, porque dele derivam seus lucros e seus salários, para ser um capitalismo global no qual os rendimentos dos rentistas provêm de todas as partes do mundo em que as empresas multinacionais estiverem presentes.


O capitalismo industrial ou dos empresários, que nascera desenvolvimentista e conservador quando as revoluções industriais foram realizadas em cada país, tornou-se liberal a partir dos anos 1830, quando a Inglaterra abriu sua economia. Depois de cem anos de baixo crescimento e alta instabilidade financeira, o liberalismo econômico entrou nos anos 1930 em profunda crise, que foi superada graças a um segundo desenvolvimentismo expresso no New Deal e nos Anos Dourados do Capitalismo do pós-guerra – um desenvolvimentismo progressista e democrático. Entretanto, uma crise econômica nos Estados Unidos e no Reino Unido, nos anos 1970, signi­ficou o fim dessa boa fase e o retorno a um segundo liberalismo econômico, agora financeiro-rentista e reacionário. A crise deste segundo liberalismo econômico talvez aponte para um terceiro desenvolvimentismo, que continuará democrático, mas não será necessariamente progressista.


Vários fatos históricos novos se somaram para que o capitalismo deixasse de ser um capitalismo de empresários ou industrial para ser um capitalismo financeiro-rentista. Primeiro, no final do século XIX, a partir da Segunda Revolução Industrial, ocorreu a emergência da tecnoburocracia, uma nova e grande classe social cuja camada mais alta substituiu os empresários na direção das grandes empresas e passou a partilhar poder e privilégio com a burguesia. Segundo, a profunda oligopolização dos mercados internos, que começou a acontecer em seguida, e não parou de se agravar, na medida em que as empresas não cessam de fazer aquisições e fusões para obter vantagem monopolista. Terceiro, a globalização – a redução dos custos dos transportes e das comunicações e a emergência das empresas multinacionais –, que de um lado reduziu a importância dos mercados internos para os capitalistas e, de outro, aumentou a competição a nível mundial. Quarto, a acumulação incessante de capital excedente nas mãos dos capitalistas rentistas e dos financistas e altos executivos desde a Segunda Guerra Mundial. Quinto, desde 1980, o aumento da desigualdade em benefício da estreita coalizão - financeiro-rentista que assume então o poder político. Sexto, a desregulação financeira que essa coalizão, apoiada na teoria econômica neoclássica, promove.


Embora o sexto fato – a desregulação financeira radical promovida nos anos 1980 pelo liberalismo econômico – tenha sido instrumental em causar a crise - financeira, ele não é suficiente para explicar a crise do capitalismo - financeiro-rentista e o retorno a que estamos assistindo, ainda inseguro, de um controle maior do Estado sobre os mercados – talvez, um terceiro desenvolvimentismo. A desregulamentação, ou, mais amplamente, o abandono da ampla coalizão de classes desenvolvimentista ou, nos termos da Escola da Regulação Francesa, fordista, em favor de um liberalismo radical, - financeiro-rentista, é uma das causas dessa crise maior. A outra causa é o quarto fato histórico novo – a acumulação de capital excedente nas mãos dos capitalistas rentistas.


Thomas Piketty, em seu notável O Capitalismo do Século XXI, salientou não apenas o aumento da desigualdade, mas também esta acumulação de capital excedente. Os dois fatos são fundamentais para compreender o retorno à instabilidade ­financeira, que, no quadro do acordo de Bretton Woods, da política macroeconômica keynesiana, e dos Anos Dourados do Capitalismo, havia sido fortemente reduzida, e a forte redução da taxa de crescimento dos países ricos.


O mundo rico enfrenta hoje uma enorme abundância de capitais: o capital tornou-se excedente em relação aos investimentos que as empresas estão dispostas a fazer. O capital excedente é inerente ao capitalismo, mesmo quando a desigualdade não aumenta, e mais ainda quando aumenta. Incapazes de consumir todos os seus lucros e os seus altos ordenados e bônus, capitalistas rentistas, financistas e altos executivos colocam seu dinheiro no setor financeiro para - financiar os investimentos. Mas o mercado é incapaz de ajustar essa oferta e esse estoque imenso de poupança com os investimentos na produção, porque, conforme Keynes e Kalecki demonstraram de forma definitiva, a demanda não cresce na proporção da oferta. Por isso, eles propuseram uma política macroeconômica que garantisse essa demanda. A qual era, naturalmente, complementada por um processo de extinção de capital causado pela depreciação e a obsolescência técnica, mas também pelas grandes guerras e pelas grandes crises econômicas. Ora, desde 1945 o mundo não enfrenta grandes guerras. Quanto às crises financeiras, embora desde 1980 os países ricos tenham abandonado o keynesianismo, a crise financeira de grande envergadura, a de 2008, acabou destruindo muito menos capital do que poderia tê-lo feito, graças às fortes políticas contracíclicas adotadas por todos os países. Passada, porém, a fase aguda da crise, o mundo voltou à austeridade fiscal, e a insuficiência de demanda voltou a ser crônica.


Enquanto o mundo rico não encontra uma solução para esse problema, no mundo periférico os países que adotaram políticas desenvolvimentistas independentes, principalmente os países do Leste da Ásia, a Índia e o Vietnã, que não exportam commodities e, portanto, não sofrem da doença holandesa, cresceram ou crescem de forma acelerada, enquanto a Malásia, a Indonésia e a Tailândia, também desenvolvimentistas, crescem de maneira satisfatória. Todos agindo com responsabilidade fiscal, garantindo lucratividade para suas empresas industriais e usando essencialmente sua própria poupança. Todos aproveitando sua mão de obra barata para competir com os países ricos na exportação de bens industriais cada vez mais sofisticados. Já os países da América Latina e, particularmente, o Brasil, que foram desenvolvimentistas entre 1930 e 1990 e lograram neutralizar sua doença holandesa, cresceram e se industrializaram. Mas, porque sempre tentaram crescer com endividamento externo (“poupança externa”) e porque, desde 1990, abandonaram sua autonomia nacional e se submeteram a Washington e Nova York, aceitaram que suas empresas voltassem a ter uma forte desvantagem competitiva em relação aos países ricos, passaram a crescer muito lentamente e vêm - ficando cada vez mais para trás em relação não apenas aos países em desenvolvimento independentes, mas também aos países ricos.


O capitalismo vive hoje uma crise de transição, que não impede que muitos países da Ásia cresçam e realizem o alcançamento, porque adotam políticas de acordo com seus interesses nacionais. Já na América Latina, novamente dependente, ou os países se desindustrializam, como o Brasil, ou transformam sua indústria em uma indústria maquila, como o México, enquanto suas elites vendem suas empresas para empresas multinacionais e se tornam rentistas. Enquanto isso os jovens, tanto pobres quanto ricos, não têm oportunidade nem de emprego nem de se tornarem empresários.


* É professor emérito da Fundação Getúlio Vargas. bresserperereira@gmail.com; www.bresserpereira.org.br

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